quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Rufino


Rufino era malandro.

Boina gasta, cigarro sem filtro na boca, havaianas nos pés, caminhava pelo calçadão com pose mas dinheiro de um rufino qualquer.

Era o que era, gente boa.

Só não gostava de playboy metido à besta - “malandro é malandro, mané é mané”, plagiava.

Dinheiro pouco nunca foi problema. Lá pelo fim do mês aprochegava-se daqueles poucos que ainda não tinham bebido o salário inteiro – coisa cada vez mais rara no bairro, pensava o Rufino economista-de-bar.

Animava a roda de samba do Bar do Cartola até a madrugada, até de manhã, fosse preciso.

Tinha mulher boa em casa, mas a mardita era mais forte.

Filhos no exército.

Rufino era boa praça.

Daí por que o rebuliço todo em torno de sua morte.

Devia pouco no Cartola, que acima de tudo era seu amigo de infância; os filhos moravam distante, sem contato; a mulher falava nada, presumiu-se que também não o faria.

O bairro parou. Das varandas todo mundo acusava todo mundo. Qualquer movimento em falso era motivo de desconfiança.

Como era questão de honra, os moradores de bem aceitaram de bom grado uma série de medidas policiais que em outros tempos seriam tachadas de autoritárias.

Teve gente inocente que ficou anos sem sair de casa. O trem que cortava o bairro passou a ignorar a estação: os viajantes não vinham mais, tamanha barafunda misantrópica.

Muita abstração, pouco empirismo. O delegado desistiu, encerrou o caso e foi pro bar sentir falta do amigo.

Sem suspeitos, criou-se o mito: Fúlcio Rufino – cujo corpo sumira, ficou somente uma mancha de sangue no tapete sujo da sala – foi pra outro bairro, pra praia, pra europa, até foi visto em filme na tv.

Voltava logo, o Rufino.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Carouselambra



Consultório frio, escuro, impessoal. O tiquetaque descompassado de um velho relógio de parede amplifica o silêncio imposto pela soberba autoridade médica. A luz opaca, que entra pela tímida janelinha de subúrbio, dá o tom cavernoso que a ocasião dispensa. Anamnese, seguida de auscultações por todo o corpo. A secretária entra e sai num passo rápido e nervoso, suscitando a ideia de que algo realmente está a acontecer.

O paciente sua frio. Pensa na família, na conta da padaria que a mulher talvez esqueça de pagar, no filho que sonha em ser jogador de futebol, mas que - o bairro todo sabe - antes deve resolver se quer ser homem ou mulher. Pensa até na mãe, jogada num asilo subsidiado por alguma obscura fraternidade de freiras antropófagas. Lembra que nunca aprendeu francês - "mas pra que porra isso ia servir agora, mesmo?", desanima.

Do lado de fora vem um miado, subitamente interrompido por um estampido e substituído por milhares de latidos intermitentes. "Antes o gato que eu", alegra-se. Em seguida cogita se não seria melhor morrer assim - um balaço na testa, sem dores nem remorsos. Conclui que não, porque odeia carne de peixe.

O doutor, que havia saído de posse de um formulário amarelado com uma cruzinha em cima (ao que pôde ver, era uma cruzinha, tinha quase certeza), retorna ao consultório. Em tom áspero, sem a mesmo cerimônia dos tempos em que ajoelhava perante o juramento de hipócrates, sentencia:

- A próclise está mal, a mesóclise está fora do lugar e a ênclise... bem, a ênclise eu nem encontrei.

"Estou doente", pensa um moribundo cheio de vida. "Terrivelmente doente".

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O Rubor


Eu lembro. Foi ontem. Ou anteontem. Mas eu lembro bem. Tudo isso já aconteceu, eu sei que sei muito bem. E o que estão dando por ocorrido nunca sucedeu, na verdade.

Acham que me enganam. Será por causa dos óculos sobre o septo ou das rugas ou do caminhar cambaleante? Bem poderiam me respeitar, deixar-me só, à parte de tudo isso. Eu, que já não me deixo enganar...

"Aquele velho", devem cochichar em suas reunioezinhas, "aquele velho está aporrinhando. Está na hora de acabar com ele". Mas que venham, venham todos!!!

Venham com canhões, de baionetas em riste ou com artes marciais ou até ocultas: o que trago dentro de mim é inatingível, é metafísico.

Venham com as cores das mais variadas nações, que pra mim tanto faz: a mentira, além de perna curta, tem sempre a mesma cor: o rubor.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Something

Velho enxerido. Vem, faz isso com a gente e depois vai embora, como se nada tivesse acontecido.

Insensato, egoísta, covarde... não tem sentimentos, Sir Paul? São 50 mil pessoas!!! Alguns velhos, algumas crianças, todos a viver o resto de seus dias na agonia de não poder vê-lo novamente.

E agora, como ficamos? Abandonados à própria sorte, deserdados da tua companhia, escorraçados, em maltrapilhos, pisoteados pelas doces lembranças de uma certa noite de um certo domingo, a sonhar com o sonho que (diziam) havia acabado, mas que, sabemos bem, outros estarão sonhando em nosso lugar...

Digam-me todos vocês: como ficamos?


 


;)

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Woman


É quase incompreensível como Yoko Ono, odiada por nove em cada dez fãs dos Beatles, descrita como uma mulher enxerida (ao ponto de ser uma das causas da separação dos Beatles em função de sua intromissão no processo de criação e sobretudo de gravação) e até mesmo sem grandes atributos de beleza (Linda McCartney é beeeeeem mais gata!) tenha conquistado John Lennon de uma maneira tão intensa como o fez.

Não são poucas as canções claramente dedicadas a Yoko - Out The Blue, Woman, Oh Yoko! e Jealous Guy, todas da careira solo de John, são algumas delas.

Lennon tinha uma reverência quase religiosa por Yoko, talvez em decorrência de um vazio afetivo deixado por uma infância conturbada, sem representação clara das funções paterna e materna (o que rendeu a emocionante Mother, um sentido desabafo contra os pais que nunca teve), e uma adolescência peculiarmente incompreendida.

Mas é assim que essas coisa funcionam: são tão belas quanto incompreensíveis.

O legal pra todos nós é que isso tudo culminou em um artista ímpar, que cantava todas as suas agruras de forma simples e sincera.

(Isso tudo em tempos de Macca em POA.)

Nostalgia: Badfinger


Foi-se o tempo da brilhantina, das motocas (afinal de contas, hoje tudo tem que andar BEM rápido), da discoteca e do Jack Nicholson fazendo interpretações memoráveis (como em O Iluminado e Um Estranho no Ninho).

É por isso que eu quero falar de uma coisa dos velhos tempos.

O Badfinger (na foto, com George Harrison) tem uma história bacana: apadrinhados pelos Beatles, passaram a ser os queridinhos da Apple, o selo criado pelos Fab Four.

O nome da banda vem do título original de With a Little Help From My Friends, grande sucesso do Sgt. Peppers, inicialmente intitulada como Bad Finger Boogie.

Os Beatles inclusive repassaram uma de suas músicas (Come And Get It, de autoria do Paul McCartney) para os caras - o que vale só a título de curiosidade, porque esta passa longe de ser a melhor canção deles (ouça aí embaixo: Come And Get It tem o maior climão do Magical Mystery Tour).

O Badfinger fez muitas (MUITAS!) músicas legais, que vêm sendo regravadas até hoje.

Eles estão tão presentes que uma de suas músicas (Baby Blue) integra a trilha sonora de Os Infiltrados, recente vencedor do Oscar de Melhor Filme (a música toca na cena em que o personagem de Leonardo Dicaprio desfere um tiro no joelho de um sujeito).

Três dos integrantes originais (Pete, Tom and Mike) são falecidos. Pete (1975) e Tom (1983) se suicidaram - o primeiro até deixou um bilhete de despedida em que dizia que levaria o empresário da banda consigo. (!) O único vivo, Joey Molland, ainda faz seu som.

Às vezes fica parecendo que naquele tempo era tão fácil fazer músicas BOAS...

Confira:

No Matter What

Day After Day

Baby Blue

Believe Me

Come And Get It

When I Say

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

La Puerta


É essa porta
que abrefecha
fechaabre
e - o pior!, o mais horrendo! - às vezes nem fecha.

Essa porta pela qual
entragente
saigente
De tudo que é cor e jeito, mas sempre fazendo barulho.

É essa porta que eu quero encontrar um dia, prosopopeiada, para lhe dar um bom murro nas fuças.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Uma breve nota biográfica *

Simpática, flutuava suavemente no sofá do canto da sala.
Mesmo sentada trazia consigo toda a fluidez da vida:
a dança, os amigos, os livros, a amizade comprometedora...
Tudo, inclusive bermudas brancas.

Amor à primeira vista! - sentenciei, tal Cabral.
Amor pra sempre, amor sincero, que não se acha em botequim nem em festa chique.

Daí por que passaram meses desde a última postagem.
Neste hiato, quieto, amei.
E vou continuar amando.
Explicado?

* a mais importante.